Dando mais um passo no estudo do ambiente que precedeu o surgimento da Umbanda, eis um excelente texto publicado originalmente na revista Nosso Pará.
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Por que a referência aos mitos do Jurupari, de Tupã, da Grande Mãe, além dos relativos à Yara, à Cobra Grande, ao Curupira, ao Boto e aos Quatro Elementos Mágicos?
Nossa intenção foi a de torná-los conhecidos porque, de cada um deles, em maior ou menor proporção, foram sendo recolhidas partes que, hoje, por assim dizer, formam a Encantaria.
A maioria das pessoas embora utilize e pratique essa forma de magia pouco ou nada sabe sobre suas origens. A origem está aí: a Encantaria é produto da fusão dos cultos amerabas e cristãos e dos elementos da Natureza: Ar, Fogo, Terra e Água. Posteriormente, essa arte foi enriquecida, também, por adição de elementos dos cultos afros que introduziram os ritos do fogo, desconhecidos pelos indígenas e esquecidos pelos portugueses que, desse elemento, só conservaram três das principais festas: o Natal, Pentecostes e a noite de São João.
A Encantaria, portanto, não nasceu do índio, nem do português, tampouco do africano, mas da mistura das três raças, na pessoa de seus descendentes: os mestiços, por extensão, os caboclos e os mulatos. Foram estes que, juntando tradições, sabedoria e, enfim, a própria intuição chegaram, por assim dizer, a essa nova arte de magia.
Na Encantaria, não há entidades principais nem mais importantes: todas são poderosas no meio em que atuam. Respeitam-se, entre si, valendo dizer que uma não se intromete no setor da outra, a não ser em uma forma indireta de ajuda, proteção e, também, de punição, quando necessário, no caso dos adeptos.
Esse panteão é constituído por sereias, marinheiros, princesas e reis; “caboclos(as)” indígenas boiadeiros(as) – mestiços. Evidentemente, há, também, a falange dos seres de onde provém todo o mal: os “mayuas”, os “gangujins” e os “quiumbas”. Os primeiros citados, por exemplo, têm íntima ligação com o culto do Jurupari. Particularmente, podem atingir, com seus poderes maléficos, adolescentes e jovens que se encontram em vias de iniciação religiosa. Originaram-se das cinzas de UALRI (tamanduá), nome dado ao velho que não soube guardar o segredo do Legislador. Lembrar que as cinzas do velho foram misturadas às do fogo, que constituem os excrementos deste. Assim, esses espíritos provém de dejetos; por isso, em si, nada têm de bom e vivem para macular os puros.
Os Caboclos, por exemplo, são os espíritos dos ancestrais que atingiram a imortalidade por terem, quando em vida, obedecido e dado cumprimento às leis do Herói-Civilizador. São tuxauas e comandam a sua tribo, de grandes guerreiros, igualmente imortalizados, por seus feitos. Protegem a mata e tudo o que ela contém, dando aos homens, de acordo com o mérito ou o desmérito, favores e castigos.
As Caboclas são espíritos de jovens que, após terem sido defloradas pela Lua, mantiveram-se virgens e, assim, acumularam um grande poder para melhor beneficiarem os humanos. Raras agem tanto nas águas quanto na terra. Uma delas, cujo nome significa “Guerreira da Lua” (pelos fundamentos relacionados ao tabu do nome, não podemos revelar o verdadeiro, em Língua Geral) bate sete tambores na selva e sete, no mar. Pertencem à tribo, mas não são comandadas por ninguém.
Os Boiadeiros(as) agem onde existe atividade pastoril. Protegem, além dos animais dos campos e das fazendas, os vaqueiros e a todos que habitam nesses lugares e exercem esse tipo de atividade. São mestiços.
Marinheiros, sereias e outras entidades regentes das águas (príncipes, princesas e reis), governam as águas salgadas da Amazônia e misturam-se em um autêntico cadinho de culturas. Neste caso, prevalecem as lendas e tradições portuguesas mescladas às dos mouros que, durante um século, viveram em Portugal. São entidades brancas, louras, de olhos azuis. Uma das mais conhecidas é Dona Mariana (este é o seu nome de “guerra”, por assim dizer), uma toya (princesa) turca que atua em águas amazônidas, e, também, no Brasil inteiro. Dona Mariana, arara cantadeira, rainha das curandeiras e patrona da Marinha Brasileira” (um dos “pontos” que se canta em seu louvor).
Um detalhe importante que diferencia a atuação dessas princesas aquáticas da Yara: enquanto esta é a paixão desenfreada, a loucura rematada, a Morte, pura e simples, sem transformações; Morte, em si e Morte, em vida, que nenhum bem, dela, se espere; é a Ilusão, aquelas beneficiam, favorecem a sorte e a fortuna e, na linha de cura, concedem aos homens, o bem maior, a saúde. Tinhosas não deixam de ser; quando resolvem malinar, “peiar” alguém, não perguntam quem está de guarda, contudo, não são de matar pelo puro prazer do ato, em si, como a Yara.
Na Encantaria, a Água é um elemento poderosíssimo. Primordial para a feitura de banhos, poções, beneragens; limpeza, em geral; mezinhas e chás. Águas de igarapé, da chuva, do mangue, dos rios, de poço e, um tabu na Encantaria: água de pote, dada a beber a pessoas seja para “amansá-las”, “prendê-las”, “maliná-las” e, o mais terrível, matá-las através de graves e irreversíveis enfermidades.
Não existe, propriamente, uma entidade do ar. O Ar é o próprio poder. Há todo um tabu em torno do Ar, pois, segundo a crença é, ele, o causador de um sem número de moléstias. Assim como seca as plantas seca, igualmente, as pessoas. O vento, também, amedronta. Na Encantaria, há uma entidade muito requisitada, a quem chamaremos de “Ventania”.
A magia é feita no tempo e se esse “caboclo” não agir, prontamente, usa-se de um estratagema para fazê-lo “correr” o mais rápido possível e solucionar a questão.
Importantíssimas, na Encantaria, são as magias realizadas utilizando-se partes de bichos considerados “de força”, numinosos, totêmicos, sejam quadrúpedes, répteis, aves ou insetos. Das aves, a mais procurada, é o Uirapuru. Um Uirapuru “trabalhado” custa uma pequena fortuna. Contudo quem o trouxer consigo é considerado “marupiara” (sortudo, próspero) em qualquer aspecto de sua vida. De um modo geral, todos os animais da Amazônia tem um enredo com a Encantaria mas, a jibóia, o coré (uma espécie de passarinho), o camaleão, o boto (tanto o macho quanto a fêmea), o poraquê (peixe elétrico); araras, periquitos, papagaios e seus próximos; o urubu e outras aves de rapina; o sapo, os calangos, o morcego e, abrangentemente, os insetos, mormente os peçonhentos, são considerados especiais.
O fogo, embora desconhecido pelo indígena, num aspecto ritualístico, ocupa lugar de destaque na Encantaria, em si e, nas chamas das velas. As magias do fogo, incluídas a fuligem e as cinzas, são pesadas, poderosas, eficazes e extremamente perigosas, principalmente para quem não sabe bem lidar com esse tipo de energia.
Fórmulas, “rezas bravas”, orações, ensalmos são contribuições do europeu e do africano. Fortes; algumas, belíssimas, são indispensáveis e de maior eficácia quando pronunciadas nas costas do desafeto, tanto quanto nas dos entes queridos, para o mal e para o bem, respectivamente. Há “experientes” famosas que conseguem verdadeiros milagres com suas rezas e alguns galhos de arruda, pião roxo, pião pajé e outros, similares.
Importante, também, na Encantaria, para favorecer e abrir a “visão” é comer-se a carne de determinados animais. Secreções do tipo chamada, popularmente, de ramela; fezes e urina; pó de ossos torrados e moídos; pena, cabeça e vísceras de pássaros e de outros animais ou o que elas segregam como, por exemplo, o fel, são, igualmente indispensáveis e fazem parte do cotidiano de qualquer “mandingueiro”.
Dos humores humanos, o suor, o sangue (principalmente, de mênstruo), o sêmen e a saliva são vitais na prática da magia ritualística, seja para favorecer ou prejudicar alguém, porque representam a própria pessoa. Cabelos, pelos pubianos e aparas de unhas ocupam, igualmente, um lugar de destaque.
Mas, o grande manancial, o trunfo máximo são as ervas; as cascas e entrecascas de árvores e arbustos; os cipós e as aningas (tajás); os tubérculos e raízes, não esquecendo os frutos e as sementes. O assunto é tão vasto que abrangeria todo um livro com um número substancialíssimo de páginas. E, diga-se a bem da verdade: cerca de 90% desses elementos utilizados na Encantaria são tabu. A ciência e, por extensão, a medicina, desconhecem-os. Como o segredo chegou aos iniciados, aos “experientes”? Através dos ancestrais, de geração em geração, boca a boca. E os ancestrais, aprenderam com quem? Com a “Mãe-do-Mato”. Acreditem (ou não) se quiserem mas, ainda hoje, é possível alcançar o “conhecimento” desses mistérios com a “Mãe” (também chamada de Curupira). Basta saber “ouvi-la”. Um detalhe importante: aquela aparência ter rível, apavorante é, digamos, a “oficial”. Nem sempre é assim. A “Mãe-do-Mato” é linda. Quando quer. Quando acha que a pessoa merece “vê-la” na sua forma mais evoluída.
O comportamento de um(a) “experiente” ou iniciado nas artes da Encantaria, em relação à Natureza e à comunidade, de um modo geral, é a chave mágica que lhe abre todas as portas, todos os caminhos, sejam eles quais forem.
Lembrar da infância, quando a sabedoria começou a nos ser repassada: “Minha filha, tudo tem Mãe!”… “Aonde fores, pede licença!”… “Faze o que tens de fazer, retira-te e não olhes para trás”…
A primeira coisa que nos ensinaram foi, ao chegar a nossa ou à casa de alguém, saudar os quatro cantos da moradia; antes de entrar, louvar, ainda que em silêncio, a soleira da porta; reverenciar as ruas e todos os seus cruzamentos, fossem machos ou fêmeas¹; lavar, vinda da rua, incontinente, as mãos e até mesmo tomar um banho porque passávamos de um ambiente profano (rua) para um recinto sagrado (o lar).
Ante a natureza, fosse mata, praia, água, campo, montanha, gruta, caminho, etc, pedir, sempre, licença às Mães de cada ambiente. Antes de atravessar um igarapé, razinho que fosse, acariciar as águas e solicitar passagem, contritamente. Não fazer necessidades fisiológicas no tempo, a não ser em casos extremos e, então, cobri-las com terra, “sepultando-as”; realizando-se um almoço ou outra refeição similar onde houvesse caça e peixe grande, convidar a parentela, os amigos e festejar (reminiscência dos Dabacuris, festas instituídas pelo Jurupari), agradecendo tão preciosas dádivas da natureza. As horas, respeitar o andar do tempo!, principalmente, as chamadas “grandes” quando os espíritos da Natureza e dos ancestrais “falam”, manifestam-se, sejam estas os momentos em que não é dia e nem é noite (pouco antes do nascer do sol e, imediatamente, após o sol desaparecer no horizonte); quando o sol engole a nossa sombra (meio-dia) e quando o caçador do céu (a constelação de Órion), ocupa as duas metades do firmamento² (a meia-noite).
A lista é grande, mas, resumindo-se, estas são as leis dos ancestrais: Agradecer a tudo, no Universo, respeitando-o e reverenciando-o com Amor, pois o caminho do progresso é infinito e, vivendo com fidelidade em relação a este, que é uma representação da Vida, infinitas serão as nossas possibilidades de atingir, magicamente, o caminho da absoluta liberdade.
1 – Cruzamento ou encruzilhada macho, tanto na cidade quanto na mata, é aquela que tem o formato de uma cruz: + Cruzamento ou encruzilhada fêmea é a que se assemelha a letra T:
2 – Aos que quiserem experimentar (é melhor em um lugar onde não haja tanta incidência de iluminação pública), à meia-noite, em ponto, erguendo-se o olhar para o firmamento, tem-se a nítida impressão de que Órion está no meio do céu. Órion é aquela constelação onde estão situadas as “Três Marias” (a cintura); duas estrelas, acima, formam os ombros e duas, afastadas, abaixo, os joelhos do Caçador do Céu.
Que legal esse texto, eu não conhecia sobre a Encantaria, achei muito interessante e curioso. Lembra muito a nossa Umbanda!!!!
É, sempre aprendendo, muito bom…adorei!!!!